sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Viagem

Já era tarde quando chegou em casa, era aniversário de seu neto. Fora um dia feliz.

Acordou cedo, leu seu jornal matinal e foi à casa do filho. Almoçaram em família. Já no fim da tarde, levou o neto para jogar futebol de botão. Como o menino havia ficado bom nisto! E voltaram para casa.

O avô teve de ficar até o menino dormir, contando histórias inventadas que sempre acabavam com um ronquinho daquele.

Agora estava ali, em seu quarto.

Fez a barba para se sentir rejuvenescido, penteou o cabelo branco como neve e fitou seu magro corpo no espelho, o mesmo corpo de nadador que atraiu diversas mulheres no passado.

Foi ao guarda-roupa, conferiu se o terno estava passado e vestiu seu samba-canção de estimação. Então foi em direção ao lado direito da cama, marcado como seu desde o início do casamento. O lado esquerdo estava vago, mas nunca perdera seu cheiro de rosas.

Agora dividia a cama com seus pensamentos e desejos, muitos deles irrealizáveis.

Pensando em como o menino crescia rápido, em como se tornaria o melhor jogador de futebol de botão do mundo, dormiu, com um belo sorriso no rosto.

Estava em sono profundo quando a janela do quarto se abriu, mas não profundo o suficiente para que não acordasse:

- É voce, não é? - disse o velho.

- Sou.

- Imaginei que estivesse a caminho. Preparo meu terno há alguns anos.

- Você são patéticos. Sua mulher me fez esperar para que pudesse se maquiar.

Era uma mulher vaidosa, que mesmo com câncer, aos 63, teimava em se maquiar. Dizia que já havia fisgado o marido, mas devia continuar a puxar com cuidado para que o anzol não se arrebentasse. E o velho ria ao descobrir a última da mulher.

Ainda com o sorriso no rosto, o velho disse:

- Obrigado por ter esperado esse dia. Não pensava que seria feliz.

A morte, encostando-se na parede, acendeu um cigarro e disse:

- Desculpe-me, esqueci que vocês precisam de dias tristes para morrerem.

- Não é isso. Foi um dia perfeito, que parecia durar para sempre.

- Vai durar, velho. Enquanto isso não me agradeça.

O velho se levantou e foi até o guarda-roupa. Tirou o terno liso do cabide e o colocou na cama.

- Poderia me despedir do meu filho? Uma ligação apenas...

- Vocês humanos são todos iguais. Nunca se contentam. Já não lhe bastou um dia perfeito, velho?

- Você tem razão. Há coisas que não devem ser ditas.

- Aí está a sensatez.

Quando a morte expulsou a última tragada dos pulmões, o velho começou a ver sua vida. A bicicleta que ganhara em seu aniversário de cinco anos; os beijos de boa noite da mãe; o primeiro beijo; a primeira transa; sua mulher, como amava essa mulher, que a cada dia ficava mais linda aos seus olhos. O nascimento do filho o emocionou muito, lembrou de quando ele quebrou a perna e de como ficou preocupado. E agora via o neto, com o mesmo sorriso bobo no rosto.

- Desista, velho, não é hora de lembrar toda a vida.

- Desculpe. Vou me vestir – disse, enxugando as lágrimas dos olhos.

Calçou as meias, colocou a calça, o cinto. Abotoou a camisa e colocou-as para dentro e pegou o blazer. Não quis tirar o samba-canção, não se sentiu tão à vontade na frente da morte.

Pensou uma última vez no filho e desejou que ele conseguisse amar o seu próprio como ele os amou.

- Como é lá? - tentou ele.

- Como você quiser.

- Vou vê-la?

- Não sei. Pode ser que sim, se ela assim quiser.

Deu uma respirada profunda e disse:

- Bem, é o fim?

A morte se sentou no lado esquerdo da cama, olhou em seus olhos azuis bem vivos e colocou a mão em seu ombro. Aquele olhar que parecia não acabar nunca terminou com um suspiro:

- Apenas o início.

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